“crac”
Um som que ali não pertencia perturbou a noite diferenciando-se do sibilar da aragem…
“crac”
Uma pedra a embater noutra…
“crac… fluuush”
As labaredas ergueram-se finalmente, alegres por lhes ter sido dada a conhecer a bênção da vida. E a terra ao redor da espada cravada na terra iluminou-se com o enxotar das trevas.
Uma simples fogueira havia sido acesa ao lado da arma… e à sua frente encontrava-se uma figura sentada que olhava fixamente para as chamas. A pessoa que desafiara a hegemonia da noite com aquela fonte de luz e calor.
- Está atrasado… nunca se atrasa - melancolia era emanada de cada sílaba, não tristeza, mas a melancolia de alguém que conhece o verdadeiro significado da única lei verdadeira naquele mundo de anarth. “O destino é inexorável.”
O homem observava as chamas, e a pouca luz que elas emanavam era suficiente para desvendar algumas das suas características. Possuía um hirsuto cabelo acastanhado, que a fogueira parecia fazer brilhar. Usava uma fita de couro tingida de vermelho à testa. Possuía traços faciais fortes, maxilares salientes e um queixo proeminente. Tudo coberto pelo início de uma fina barba preta.
Diz-se que os olhos são os espelhos da alma. Mas não os daquele homem. No seu caso estes eram a sua própria alma. Um livro aberto de emoções. As chamas reflectiam-se nos orbes verdes como musgo. Pareciam não pertencer àquele rosto de homem, pois aqueles eram os olhos de uma criança, e emanavam uma imensa tristeza.
De súbito o homem apoiou-se no chão e levantou-se, olhando por cima do ombro para a estrada sombria. Ouvira a harmonia da noite quebrar-se uma vez mais.
O som de passos a aproximarem-se… Soube que chegara o momento que pensara nunca poder acontecer. Virou as costas à fogueira e agarrou no punho da espada cravada na terra com um punho enluvado. Arrancou-a do chão e embainhou-a com um sibilar metálico à sua cintura. Sabia que no momento em que a desembainhasse novamente tudo estaria perdido. Não havia como regressar. Tinha de pôr tudo atrás das costas.
Era de estatura mediana, algo muito comum naquela zona do mundo e usava algumas peças de armadura. Tinha um fato de couro cerzido que quase lhe chegava aos pés, o mínimo indispensável para qualquer guerreiro, a que tinham sido cozidas lâminas de ferro na parte do tronco, o que oferecia uma maior protecção. Usava espaldeiras, bem como braçais e caneleiras para proteger os membros, tudo de ferro. Todas as peças da armadura pareciam baças como se não fossem limpas havia muito tempo.
O homem fechou os olhos e sentiu a presença aproximar-se. Deixou-se estar sentindo a calma da batalha inundá-lo uma vez mais. Recordou todas as viagens, recordou as terras por onde tinha passado, recordou vitórias e derrotas, recordou aquela ilha e o dia que mudara a sua vida, e acima de tudo recordou-a a ela e a ele. O fio da sua vida tinha-o conduzido até àquela estrada poeirenta e sabia que não havia nada a fazer. Depois desta noite enluarada nada mais seria o mesmo.
O som de passos parou e sabia que não se encontrava sozinho.
Abriu lentamente os olhos verdes e encarou finalmente à luz da fogueira a quem o tinha perseguido durante os últimos dois anos. Foi então que soube que a luta era inevitável.
Orbes verdes fitaram orbes cinzentos.
O homem que nascera da noite era exactamente o oposto do outro guerreiro. Era bastante mais alto que este e não usava qualquer armadura. Apenas uma camisa e calças bastante esfarrapadas. A camisa não tinha mesmo mangas, deixando ver os seus braços magros, cuja pele brilhava de uma palidez surpreendente.
A sua face não deixava transparecer qualquer emoção. Tinha lábios finos e queixo um pouco alongado. Tinha cabelo louro quase branco muito longo que lhe descia pelos ombros abaixo. Uma fita azul na testa mantinha-o longe dos olhos. Uma cicatriz antiga cortava-lhe diagonalmente a face esquerda. O recém-chegado esboçou um sorriso, que mais parecia um esgar.
- Há quanto tempo ajingha… - Havia uma ira mal contida nas suas palavras
- Elfric… Esse nome não mais o voltei a usar
Elfric riu-se para a noite. Riu-se enquanto se preparava. Riu-se enquanto levava a mão à sua cintura e desembainhava uma longa espada. Riu-se enquanto se lançava para diante com uma velocidade sobrenatural pronto a matar. O guerreiro viu o tremendo perigo em que se encontrava e levou a mão ao seu flanco esquerdo. Estava na altura de esquecer o passado.
O golpe silvou no ar, o luar reflectiu-se por um segundo e em seguida uma nuvem de pó inundou o local.
- Vejo que melhoraste desde a última vez que nos encontrámos.
Elfric dirigira aquele golpe à cabeça do guerreiro mas este esquivara-se no último segundo. O terrível golpe atingira apenas o chão levantando toda aquela poeira. Sempre a rir o atacante virou-se e encarou o seu oponente que nem sequer desembainhara a espada uma vez mais e caminhou lentamente para ele.
- Nunca nos devias ter traído.
- Não sei do que falas.
Continuou a andar na direcção do guerreiro.
- O quinto selo foi aberto. O tenebroso sabe que o seu tempo se esgota. A maior guerra que o mundo testemunhou está iminente e...
Os olhos cinzentos brilharam de fúria gélida.
- Tudo por tua causa.
O guerreiro nada disse. Elfric franziu o sobrolho à medida que se aproximava.
- Não dizes nada? Estás cansado de fugir?
Uma terrível fúria enchia-o. Estava na hora de acabar com aquilo. Desejava aquele momento havia dois anos.
O guerreiro olhou para o seu perseguidor que parara a três passos de distância e viu-lhe as orelhas pontiagudas. Sentiu uma tristeza invadi-lo.
- Elfric este não é o caminho.
- Não penses que essas palavras te salvarão. Cansei-me de as ouvir antes. Prepara-te.
Assim fez. Levou a mão ao punho de Echtelion, a espada cravada na terra e soube que a hora chegara. Fitou aquele que fora o seu grande amigo e mentor.
- Elfric, tu nunca compreendeste nada.
Fechou os orbes verdes, e quando os abriu os olhos de menino haviam desaparecido. Fúria gelada inundava-os.
- Agora é tarde.
Com um silvo Ternd desembainhou a sua espada.

