terça-feira, 7 de outubro de 2008

Realidade


- Monte de esterco inútil.

O homem fardado pontapeou o rapaz estendido no chão no estômago fazendo-o contorcer-se de dor.

- Espalha a palavra cobarde! Neste sítio quem manda somos nós! – gritou ele desferindo outro pontapé na cara do jovem, que gemeu ao ser projectado para trás. Gotas de sangue espalharam-se pelo chão.

- Não exageres Mike. Ele tem de ficar em estado de falar. - troçou outro.

O homem que se chamava Mike aproximou-se do rapaz espancado inerte no chão. Tirou o elmo e encostou o ouvido ao peito do rapaz. A sua armadura rangeu preguiçosamente com os movimentos feitos.

- Ainda respira. Vamos embora. Ouvi dizer que Quimby empregou uma ruiva na sua estalagem. Vamos ver se consigo abrir-lhe as pernas sem fazer demasiados estragos!

E rindo-se os quatro homens seguiram o seu caminho deixando-o para trás. Vários minutos passaram. Conseguia sentir o sabor férreo do seu próprio sangue. Todo o seu corpo lhe doía intensamente e deixou-se estar ali, esquecido, respirando o pó do chão e sentiu-se impotente. Após um tempo que pareceu uma eternidade encontrou de novo forças para apoiar as mãos no chão e ajoelhar-se, limpando o fio de sangue que lhe escorria da boca. Olhou em volta, mas não viu ninguém. . Não que o facto de estarem pessoas a passar fizesse alguma diferença. Era apenas mais um espancamento, ou, nas próprias palavras da guarda, uma das diárias demonstrações de autoridade que ocorriam incessantemente. Quem tinha ainda a coragem de andar pelas ruas fingia que não via. Não por egoísmo, mas por medo. Não havia qualquer tipo de rebeldia na pacata vila. Homens fardados passeavam preguiçosamente pelas ruas, demonstrando a sua autoridade em quem lhes apetecesse, sem represálias, sem qualquer reacção por parte dos restantes. Na verdade, a guarda não tinha trabalho nenhum. A repressão era total e ninguém podia fazer nada. Era essa a lei no nefasto reino de Geth.

Quando o mundo era jovem e os diferentes povos estavam a estabelecer-se teve início uma disputa de entre as tantas que haviam arrasado as muitas terras. Esta era uma disputa pelo domínio do continente meridional, Zurda.

Duas grandes tribos haviam encontrado a rota marítima até esse continente. A tribo chefiada por Ilio e a comandada por Geth. Ilio aportara a Zurda pelo sul e para seu espanto e dos seus descobrira que aquelas terras eram bastante férteis. Havia grandes prados onde o gado podia pastar e campos agrícolas, bem como várias nascentes ao longo dos flancos das colinas. Havia apenas uma grande falha naquelas terras que iria ser importante mais adiante.

Perante tanta abundância a sobrevivência da tribo do chefe Ilio estava assegurada e não tardaram a nascer as primeiras vilas. Castelos foram erigidos, a economia foi estabelecida, a vida foi privilegiada e o chefe Ílio teve a honra de ser o primeiro rei de Iliofyrd. O local junto ao mar onde esta tribo em primeiro lugar chegou tornou-se a cidade mais importante do reino. Ilion-in, onde a família real, os descendentes de Ílio ainda residem.

Geth havia sido um chefe mau mas não um mau chefe. A sua tribo avistara o continente de Zurda dois anos depois dos colonos de Ílio, mas ao contrário destes, aportaram no limite nordeste do continente, exactamente a sul do cabo desditoso. E o que encontrara foram infindáveis pântanos, florestas e terrenos rochosos e escarpados.

Apesar das condições adversas o chefe decidiu ocupar aquelas terras certo de que o seu povo seria capaz de florescer ali com trabalho e preserverança. Assim nasceu um novo reino, e à semelhança de Ílio, Geth foi coroado rei.

Nos primeiros anos do seu reinado a paz prosperou, apesar de existir fome. As colheitas eram sempre fracas, devido aos contínuos períodos chuvosos durante grande parte do ano, e o gado era fraco pois não existiam pastos para os alimentar. Geth e os seus seguidores sabiam que não durariam muito tempo caso não se fizesse alguma coisa. Pensou que se a terra não lhes dava o sustento necessário então ele teria de vir do mar. Assim ordenou que se começassem a construir as primeiras docas e barcos pesqueiros. Enviou também batedores com a missão de reunir mais informações acerca daquela zona e esperou que regressassem com boas notícias. O rei não teve de esperar muito tempo pois algum tempo depois seria assassinado. O povo estava insatisfeito e com fome e as rebeliões alastraram-se como fogo por feno. Eventualmente até seus seguidores se viraram contra ele. O rei Geth estava morto.

Começaram os tempos negros no amaldiçoado reino. Sem um rei para manter o povo unido e ninguém que o ousasse ser a anarquia instalou-se e parecia seguramente que aquele iria ser o fim.

Mas um raio de luz finalmente iluminou aquelas terras. Os batedores enviados pelo defunto rei Geth regressaram quatro meses após a sua morte, e traziam notícias inacreditáveis.

Um deles, um homem chamado Arnold, fora arrastado enquanto tentava atravessar um rio. A sorte permitiu-lhe agarrar-se a um ramo e lentamente progredir até alcançar a margem. Após recuperar pôs-se a explorar a zona até finalmente encontrar um enorme buraco numa encosta escarpada. O que viu lá dentro ia mudar tudo.

Naquela caverna estavam toneladas de ferro. Era um enorme jazigo mineral de ferro.

Posteriores buscas revelaram ainda mais minas daquele importante recurso, e também de cobre.

Os outros batedores também traziam notícias. Haviam viajado muitos quilómetros para sul, atravessando vaus e pântanos, nada escapando ao seu escrutínio. Por fim encontraram uma imensa planície e colinas verdes. Aqueles homens haviam chegado ao reino de Iliofyrd e aí descobriram que este tinha desesperadamente falta de metais…

Arnold foi coroado rei e uma nova era despontou. As minas começaram imediatamente a ser exploradas o que trouxe muita riqueza ao enfraquecido reino. Estabeleceram-se tratados comerciais e antes que se desse por isso Geth estava a receber comida, cortesia dos campos férteis de Iliofyrd, enquanto algumas toneladas de minérios eram enviadas àquele reino. A paz voltou e finalmente começou a crescer e a enriquecer.

Muitos anos depois destas coisas terem acontecido uma criança nasceu e o povo riu e gritou pelas ruas das cidades numa enorme festa. Etwold, da dinastia Arnoldwina, o herdeiro do reino de Geth tinha visto a luz do mundo. Depressa iriam desejar que ele tivesse permanecido nas grandes trevas para todo o sempre.

Etwold tomou as rédeas do poder com a idade de 15 anos. A princípio continuou o trabalho do seu pai e do pai do seu pai, recuando até ao grande rei Arnold. Mas o jovem rei queria mais. Queria não ter de depender para sempre dos seus vizinhos. Queria as suas terras e a sua prosperidade. Queria poder, o tipo de poder que advém das vitórias guerreiras, e para isso precisava de Iliofyrd. Geth cresceria para sul até todo o continente se unificar sob o estandarte do corvo.

Mas o conselho real opunha-se a estas ideias e Etwold, na altura com 18 anos não era um homem que gostasse de perder. Reuniu os seus seguidores, defensores dos seus ideais e matou todos os homens importantes que faziam parte do conselho. O reino de Geth estava acorrentado pelo sangue real de Etwold. Foi nessa altura que foi construída a grande e terrível fortaleza de Neogard, exactamente sobre o cabo desditoso. O limite noroeste do continente de Zurda.

O rei levou as suas espadas para sul numa louca campanha determinado a subjugar os seus aliados de outrora e estender o seu reino de mar a mar. Falhou miseravelmente. O rei Dilion de Iliofyrd, homem inteligente estava ciente de que alguma coisa se passava. Os mercadores que viajavam por todo o continente haviam ouvido rumores da loucura do rei Etwold e prontamente o reino ficara em estado de alerta. Receoso de que Etwold tivesse traído o histórico tratado dos seus antepassados, o rei Dilion enviou espiões a Geth. Muitos sacrificaram a própria vida às mãos da guarda do rei mas alguns conseguiram regressar a casa onde transformaram os rumores em verdades.

Foi delineada a campanha. O rei Dilion não era um guerreiro, mas um estratega. Foram formados grupos de guerra que marcharam até à fronteira, preparando a emboscada nas colinas que assinalavam o início de Iliofyrd. O grosso do exército seguiu com segurança pela grande estrada que atravessava as colinas, esperando calmamente o inimigo.

Quando Etwold chegou à fronteira e viu os lanceiros inimigos à sua espera a formar uma muralha de escudos nem sequer se deu ao trabalho de dialogar. Marchou contra eles em formação nada mais ansiando do que destruir o reino de Iliofyrd naquele momento. Chamá-lo-iam de Etwold o grande, Etwold o guerreiro, Etwold o sem piedade.

As muralhas de escudos esmagaram-se uma contra a outra na estrada por entre as colinas. Madeira contra madeira, couro contra couro, e os homens da primeira e segunda linha começavam a sofrer graves ferimentos e a morrer. Soou então a trompa e a batalha terminou. Os grupos de guerra escondidos nas colinas atacaram a retaguarda do exército de Etwold, efectuando o trabalho mais fácil de uma batalha. A pura canção da espada ao perfurar a carne e o couro e o ferro de um inimigo desprotegido que nada pode fazer. Caíram como moscas e quando tudo terminou o exército de Geth estava desfeito, com grande mérito da manobra inteligente de Dilion.

O rei Etwold sobreviveu. Regressou à negra fortaleza de Neogard, lambeu as suas feridas e planeou a sua vingança. O povo não o perdoou por quebrar as tréguas com Iliofyrd mas ele não precisava que o povo o perdoasse pois ele era o rei Etwold e todos o saberiam.

Foi assim que o reino de Geth foi submetido à tirania de Etwold e da sua guarda. As torturas eram uma constante e falar mal do rei em público passou a ser punido com a morte no cadafalso. À guarda foi dada permissão para fazer uso da força quando quisesse e como entendesse. Patrulhavam as ruas das cidades do reino antes e após o anoitecer fazendo tudo o que quisessem com as pessoas. E Etwold, escondido na sua negra fortaleza deu a si mesmo um cognome. Etwold O tirano seria agora.









10 anos haviam passado desde esse dia e Ternd finalmente ergueu-se de olhos verdes rasos de lágrimas e observou as colinas verdes que se erguiam por detrás da grande planície. Escutou promessa de liberdade trazida pelo vento mas nada podia fazer. Ele tal como todos os outros estava acorrentado ali pelo sangue do rei Etwold. Limpou a face com o braço e observou como havia sido manchado de sangue e lágrimas.

Virou-se e caminhou pela pequena rua. O líquido vermelho a pingar atrás de si.

Assim era a lei no nefasto reino de Geth. Assim era a lei na vila fronteiriça de Irniled.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Prólogo



A noite estava calma, sem nuvens e o luar dançava indolentemente na lâmina da espada cravada exactamente a meio do caminho de terra batida, que qual serpente rastejava e se perdia de vista na planície adormecida. A arma parecia estranhamente alienígena colocada naquela paisagem. Os copos dourados decorados com círculos entrelaçados nada tinham em comum com o azul escuro do céu. A uma grande distância da espada cravada na terra avistavam-se recortadas na noite escura as ameias de um glorioso castelo. Pontos preguiçosos de luz dourada indicavam as tochas que ainda ardiam nas torres, quase se confundindo com as estrelas.

“crac”

Um som que ali não pertencia perturbou a noite diferenciando-se do sibilar da aragem…

“crac”

Uma pedra a embater noutra…

“crac… fluuush”

As labaredas ergueram-se finalmente, alegres por lhes ter sido dada a conhecer a bênção da vida. E a terra ao redor da espada cravada na terra iluminou-se com o enxotar das trevas.
Uma simples fogueira havia sido acesa ao lado da arma… e à sua frente encontrava-se uma figura sentada que olhava fixamente para as chamas. A pessoa que desafiara a hegemonia da noite com aquela fonte de luz e calor.

- Está atrasado… nunca se atrasa - melancolia era emanada de cada sílaba, não tristeza, mas a melancolia de alguém que conhece o verdadeiro significado da única lei verdadeira naquele mundo de anarth. “O destino é inexorável.”

O homem observava as chamas, e a pouca luz que elas emanavam era suficiente para desvendar algumas das suas características. Possuía um hirsuto cabelo acastanhado, que a fogueira parecia fazer brilhar. Usava uma fita de couro tingida de vermelho à testa. Possuía traços faciais fortes, maxilares salientes e um queixo proeminente. Tudo coberto pelo início de uma fina barba preta.
Diz-se que os olhos são os espelhos da alma. Mas não os daquele homem. No seu caso estes eram a sua própria alma. Um livro aberto de emoções. As chamas reflectiam-se nos orbes verdes como musgo. Pareciam não pertencer àquele rosto de homem, pois aqueles eram os olhos de uma criança, e emanavam uma imensa tristeza.
De súbito o homem apoiou-se no chão e levantou-se, olhando por cima do ombro para a estrada sombria. Ouvira a harmonia da noite quebrar-se uma vez mais.
O som de passos a aproximarem-se… Soube que chegara o momento que pensara nunca poder acontecer. Virou as costas à fogueira e agarrou no punho da espada cravada na terra com um punho enluvado. Arrancou-a do chão e embainhou-a com um sibilar metálico à sua cintura. Sabia que no momento em que a desembainhasse novamente tudo estaria perdido. Não havia como regressar. Tinha de pôr tudo atrás das costas.

Era de estatura mediana, algo muito comum naquela zona do mundo e usava algumas peças de armadura. Tinha um fato de couro cerzido que quase lhe chegava aos pés, o mínimo indispensável para qualquer guerreiro, a que tinham sido cozidas lâminas de ferro na parte do tronco, o que oferecia uma maior protecção. Usava espaldeiras, bem como braçais e caneleiras para proteger os membros, tudo de ferro. Todas as peças da armadura pareciam baças como se não fossem limpas havia muito tempo.

O homem fechou os olhos e sentiu a presença aproximar-se. Deixou-se estar sentindo a calma da batalha inundá-lo uma vez mais. Recordou todas as viagens, recordou as terras por onde tinha passado, recordou vitórias e derrotas, recordou aquela ilha e o dia que mudara a sua vida, e acima de tudo recordou-a a ela e a ele. O fio da sua vida tinha-o conduzido até àquela estrada poeirenta e sabia que não havia nada a fazer. Depois desta noite enluarada nada mais seria o mesmo.

O som de passos parou e sabia que não se encontrava sozinho.

Abriu lentamente os olhos verdes e encarou finalmente à luz da fogueira a quem o tinha perseguido durante os últimos dois anos. Foi então que soube que a luta era inevitável.

Orbes verdes fitaram orbes cinzentos.

O homem que nascera da noite era exactamente o oposto do outro guerreiro. Era bastante mais alto que este e não usava qualquer armadura. Apenas uma camisa e calças bastante esfarrapadas. A camisa não tinha mesmo mangas, deixando ver os seus braços magros, cuja pele brilhava de uma palidez surpreendente.

A sua face não deixava transparecer qualquer emoção. Tinha lábios finos e queixo um pouco alongado. Tinha cabelo louro quase branco muito longo que lhe descia pelos ombros abaixo. Uma fita azul na testa mantinha-o longe dos olhos. Uma cicatriz antiga cortava-lhe diagonalmente a face esquerda. O recém-chegado esboçou um sorriso, que mais parecia um esgar.

- Há quanto tempo ajingha… - Havia uma ira mal contida nas suas palavras

- Elfric… Esse nome não mais o voltei a usar

Elfric riu-se para a noite. Riu-se enquanto se preparava. Riu-se enquanto levava a mão à sua cintura e desembainhava uma longa espada. Riu-se enquanto se lançava para diante com uma velocidade sobrenatural pronto a matar. O guerreiro viu o tremendo perigo em que se encontrava e levou a mão ao seu flanco esquerdo. Estava na altura de esquecer o passado.

O golpe silvou no ar, o luar reflectiu-se por um segundo e em seguida uma nuvem de pó inundou o local.

- Vejo que melhoraste desde a última vez que nos encontrámos.

Elfric dirigira aquele golpe à cabeça do guerreiro mas este esquivara-se no último segundo. O terrível golpe atingira apenas o chão levantando toda aquela poeira. Sempre a rir o atacante virou-se e encarou o seu oponente que nem sequer desembainhara a espada uma vez mais e caminhou lentamente para ele.

- Nunca nos devias ter traído.

- Não sei do que falas.

Continuou a andar na direcção do guerreiro.

- O quinto selo foi aberto. O tenebroso sabe que o seu tempo se esgota. A maior guerra que o mundo testemunhou está iminente e...

Os olhos cinzentos brilharam de fúria gélida.

- Tudo por tua causa.

O guerreiro nada disse. Elfric franziu o sobrolho à medida que se aproximava.

- Não dizes nada? Estás cansado de fugir?

Uma terrível fúria enchia-o. Estava na hora de acabar com aquilo. Desejava aquele momento havia dois anos.

O guerreiro olhou para o seu perseguidor que parara a três passos de distância e viu-lhe as orelhas pontiagudas. Sentiu uma tristeza invadi-lo.

- Elfric este não é o caminho.

- Não penses que essas palavras te salvarão. Cansei-me de as ouvir antes. Prepara-te.

Assim fez. Levou a mão ao punho de Echtelion, a espada cravada na terra e soube que a hora chegara. Fitou aquele que fora o seu grande amigo e mentor.

- Elfric, tu nunca compreendeste nada.

Fechou os orbes verdes, e quando os abriu os olhos de menino haviam desaparecido. Fúria gelada inundava-os.

- Agora é tarde.

Com um silvo Ternd desembainhou a sua espada.